terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Motivo - Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.


Irmão das coisas fugidias, 

não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.


Se desmorono ou se edifico, 

se permaneço ou me desfaço, 
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.


Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.


Cecília Meireles foi a primeira grande escritora da literatura brasileira e a principal voz feminina da nossa poesia moderna.

Embora se tenha destacado no verso, em que demonstrou  ter grande habilidade, a obra da escritora abrange  contribuições no domínio do conto, da crônica, da literatura infantil e do folclore.

Situando-se entre o grupo espiritualista da segunda geração modernista, ao lado de Jorge de Lima, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Augusto Frederico Schimidt e outros, Cecília Meireles trilhou caminhos próprios, perseguindo a melhor tradição lírica das literaturas portuguesa e brasileira.


Comentários sobre o poema

Em “Motivo” ( título que pode ser associado à motivação para a poesia), Cecília Meireles aborda uma temática comum à segunda fase do Modernismo: a reflexão sobre o próprio ato de escrever. O esquema de rimas é facilmente perceptível: trata-se de rimas alternadas (ABAB), as quais, junto com as rimas emparelhadas (AABB) e as rimas opostas (ABBA), constituem as combinações mais comuns encontradas tanto em textos poéticos clássicos, como os sonetos camonianos quanto nos poemas modernos. É importante assinalar que essa característica, que podemos chamar de constância rímica, está aliada à homogeneidade das estrofes.

Na primeira estrofe, o eu lírico descreve sua condição de ser poeta e as razões que o levam a escrever. Para ele, poeta é alguém que não é “alegre nem triste”, que canta as experiências singulares vividas a cada instante. Repare que “instante”, no poema, não está relacionada apenas a tempo (fugacidade), mas a circunstâncias especiais que o poeta muitas vezes é capaz de captar e, consequentemente, registrar em seus poemas.

Na segunda estrofe, o eu lírico considera-se um ser passível das ações transitórias. Há uma relação de causa e consequência entre os dois primeiros versos: como é irmão das coisas fugidias, não sente gozo nem tormento, ou seja, como aceita o fato de tudo ser efêmero, o começar e o terminar das coisas não o abalam.

A expressão “fugidias”, associada à existência do “instante”, define para o eu lírico que poeta (irmão do efêmero) é aquele que canta (celebra em poesia) o momento presente, vivido em sua plenitude. Observe que, com exceção de “estarei”, todos os verbos estão no presente do indicativo (canto, existe, sou, sinto, atravesso) enfatizando a ideia do “instante” que determina o momento da concepção, o aqui - agora da criação poética.

Na terceira estrofe, o eu lírico apresenta várias antíteses (desmorono/edifico; permaneço/ me desfaço; se fico/ passo) que representam dúvidas, incertezas ou talvez algo que ele não consegue definir sobre si mesmo(não sei, não sei). Esta inquietação sugere uma reflexão sobre a criação poética em relação à brevidade da vida.

Finalmente, na quarta estrofe, temos a conclusão do poema. O eu lírico, como se de repente encontrasse respostas para as suas indecisões, demonstra certeza, convicção: “Sei que canto” (um louvor que brota da consciência de que a vida se completa pelos instantes de que é feita) e essa “canção é tudo” (a poesia, sua razão de viver) que se perpetua no tempo (a “asa ritmada” que “tem sangue eterno”).

Perceba que a expressão “Asa ritmada” sugere não apenas o trabalho de construção sonora e rítmica do poema, mas também a ideia de que há um voo, uma elevação espiritual quando se elabora o texto poético. O poeta – ser efêmero e passageiro – estará mudo em breve (eufemismo que simboliza a morte), mas seu texto o terá elevado...

A poesia de Cecília Meireles é essencialmente isso: um discurso de musicalidade suave e sutil, cujo contato com a realidade é o ponto de partida para uma experiência de transcendência, de superação dessa realidade pela ascese do espírito(ascese não de fundo religioso, mas de fundo estético, poético)



















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