quinta-feira, 11 de agosto de 2016

O palácio da Ventura - Antero de Quental

Sonho que sou um cavaleiro andante. 
Por desertos, por sóis, por noite escura, 
Paladino do amor, busco anelante 
O palácio encantado da Ventura! 

Mas já desmaio, exausto e vacilante, 
Quebrada a espada já, rota a armadura... 
E eis que súbito o avisto, fulgurante 
Na sua pompa e aérea formosura! 

Com grandes golpes bato à porta e brado: 
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado... 
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais! 

Abrem-se as portas d'ouro com fragor... 
Mas dentro encontro só, cheio de dor, 
Silêncio e escuridão - e nada mais! 


A produção poética de Antero de Quental (1842-1891) apresenta três momentos distintos, intimamente ligados à trajetória de sua vida: 

• as primeiras poesias, anteriores à Questão Coimbrã, que refletem  uma postura ainda romântica;
• os poemas de Odes modernas, que representam um marco em sua obra, inauguram a fase  da poesia revolucionária e dos agitados dias de Coimbrã (no prefácio às Odes, Antero afirma que "A poesia que quiser corresponder ao sentimento mais fundo de seu tempo, hoje, tem forçosamente de ser uma poesia revolucionária.");
• o livro sonetos, o mais completo e revelador de Antero de Quental, que o crítico Antônio Sérgio dividiu em oito ciclos: o primeiro, "da expressão lírica do amor-paixão", reflete o lirismo da juventude do poeta; o segundo , "do apostolado social", retrata a época revolucionária de Coimbrã; o terceiro, "do pensamento pessimista"; o quarto, "do desejo de evasão"; o quinto, "da morte"; o sexto, "do pensamento de Deus"; o sétimo, "da metafísica"; o oitavo, "da voz interior e do amor puro sempiterno". Nos quatro últimos ciclos os temas metafísicos.
Seus sonetos são tecnicamente perfeitos e, na maior parte das vezes, apresentam uma linha de raciocínio marcada pela lógica (motivo pelo qual mereceu o epíteto de poeta-filósofo ou, para alguns, filósofo-poeta).


terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Motivo - Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.


Irmão das coisas fugidias, 

não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.


Se desmorono ou se edifico, 

se permaneço ou me desfaço, 
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.


Sei que canto. E a canção é tudo.

Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.


Cecília Meireles foi a primeira grande escritora da literatura brasileira e a principal voz feminina da nossa poesia moderna.

Embora se tenha destacado no verso, em que demonstrou  ter grande habilidade, a obra da escritora abrange  contribuições no domínio do conto, da crônica, da literatura infantil e do folclore.

Situando-se entre o grupo espiritualista da segunda geração modernista, ao lado de Jorge de Lima, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Augusto Frederico Schimidt e outros, Cecília Meireles trilhou caminhos próprios, perseguindo a melhor tradição lírica das literaturas portuguesa e brasileira.


Comentários sobre o poema

Em “Motivo” ( título que pode ser associado à motivação para a poesia), Cecília Meireles aborda uma temática comum à segunda fase do Modernismo: a reflexão sobre o próprio ato de escrever. O esquema de rimas é facilmente perceptível: trata-se de rimas alternadas (ABAB), as quais, junto com as rimas emparelhadas (AABB) e as rimas opostas (ABBA), constituem as combinações mais comuns encontradas tanto em textos poéticos clássicos, como os sonetos camonianos quanto nos poemas modernos. É importante assinalar que essa característica, que podemos chamar de constância rímica, está aliada à homogeneidade das estrofes.

Na primeira estrofe, o eu lírico descreve sua condição de ser poeta e as razões que o levam a escrever. Para ele, poeta é alguém que não é “alegre nem triste”, que canta as experiências singulares vividas a cada instante. Repare que “instante”, no poema, não está relacionada apenas a tempo (fugacidade), mas a circunstâncias especiais que o poeta muitas vezes é capaz de captar e, consequentemente, registrar em seus poemas.

Na segunda estrofe, o eu lírico considera-se um ser passível das ações transitórias. Há uma relação de causa e consequência entre os dois primeiros versos: como é irmão das coisas fugidias, não sente gozo nem tormento, ou seja, como aceita o fato de tudo ser efêmero, o começar e o terminar das coisas não o abalam.

A expressão “fugidias”, associada à existência do “instante”, define para o eu lírico que poeta (irmão do efêmero) é aquele que canta (celebra em poesia) o momento presente, vivido em sua plenitude. Observe que, com exceção de “estarei”, todos os verbos estão no presente do indicativo (canto, existe, sou, sinto, atravesso) enfatizando a ideia do “instante” que determina o momento da concepção, o aqui - agora da criação poética.

Na terceira estrofe, o eu lírico apresenta várias antíteses (desmorono/edifico; permaneço/ me desfaço; se fico/ passo) que representam dúvidas, incertezas ou talvez algo que ele não consegue definir sobre si mesmo(não sei, não sei). Esta inquietação sugere uma reflexão sobre a criação poética em relação à brevidade da vida.

Finalmente, na quarta estrofe, temos a conclusão do poema. O eu lírico, como se de repente encontrasse respostas para as suas indecisões, demonstra certeza, convicção: “Sei que canto” (um louvor que brota da consciência de que a vida se completa pelos instantes de que é feita) e essa “canção é tudo” (a poesia, sua razão de viver) que se perpetua no tempo (a “asa ritmada” que “tem sangue eterno”).

Perceba que a expressão “Asa ritmada” sugere não apenas o trabalho de construção sonora e rítmica do poema, mas também a ideia de que há um voo, uma elevação espiritual quando se elabora o texto poético. O poeta – ser efêmero e passageiro – estará mudo em breve (eufemismo que simboliza a morte), mas seu texto o terá elevado...

A poesia de Cecília Meireles é essencialmente isso: um discurso de musicalidade suave e sutil, cujo contato com a realidade é o ponto de partida para uma experiência de transcendência, de superação dessa realidade pela ascese do espírito(ascese não de fundo religioso, mas de fundo estético, poético)